O tempo é “rei” para quem não tem medo de viver. Esse é o fio condutor de um homem que ultrapassou barreiras, passou por momentos sombrios no Brasil, escreveu canções que marcam gerações, participou de uma das décadas mais efervescentes do cenário musical brasileiro, venceu prêmios, foi reconhecido por grandes corporações internacionais, contribuiu politicamente para seu país, viu grandes amores partirem e não para de mostrar para o que veio… Gilberto Gil sabe como usar o tempo a seu favor.
Na última sexta-feira (17/10), o baiano de 83 anos voltou aos palcos para fechar sua turnê de despedida, marcando seus mais de 60 anos de carreira. O cantor e compositor deu adeus ao público de São Paulo neste sábado (18/10), com dois shows recheados de emoção, que foram acompanhados pelo portal LeoDias.
O telão do Allianz Parque reluziu às 20h30 com histórias sobre o sonho do pequeno Gil. Filho de Claudina e de José, já demonstrava sua aptidão pela música aos 3 anos de idade. Não deixou o tempo desgastar essa paixão e seguiu o caminho. E é com “Palco”, mais uma vez com “a alma cheirando a talco como bumbum de bebê”, que o pequeno – hoje grande Gil – abre a turnê.
Não é à toa que “Palco” é a canção escolhida para iniciar sua jornada de despedida. O cantor já chegou a revelar que a letra foi escrita na época em que pensou em desistir da carreira de músico, na década de 1980. Ao receber uma visita da banda “A Cor do Som”, intérpretes da letra, recebeu um conselho: um relicário de palavras como aquele mostrava seu talento. Ele não podia deixar de seguir sua sina. Aquilo animou Gil, que gravou a canção em seguida.
Versátil, Gil não se limitou a apenas um único gênero musical: se dedicou ao samba, reggae, axé, forró, rock, Ijexá e o original tropicalismo. A setlist perpassa vários momentos de sua carreira, iniciando com composições da década de 1960, como “Eu Vim da Bahia”, um marco que exalta a identidade do povo baiano; e seguindo para vários sucessos de 1970 e 1980.
Músicas escolhidas
Os destaques que levaram o público a cantar em uníssono vão para “Tempo Rei”, escolhida para ser também o nome da turnê; “Cálice”, com direito a recado em vídeo de Chico Buarque; “Refazenda”, lançada no álbum homônimo de 1975; “Vamos Fugir”, que ficou famosa na interpretação da banda mineira Skank; “A Novidade”, sucesso com Os Paralamas do Sucesso; além de “Se Eu for Falar com Deus”, “Drão”, “Esotérico”, “Expresso 2222”, “Andar com Fé” e “Aquele Abraço”.
Apesar de quase 100% da turnê contar com composições originalmente de Gil, também houve espaço para interpretações famosas em sua voz, como “Eu Só Quero um Xodó”, composta por Dominguinhos e Anastácia; e “Esperando na Janela” de Targino Gondim, Manuca Almeida e Raimundinho do Acordeon.
Uma observação também paira na escolha da setlist: os anos que marcaram a Ditadura Militar no Brasil nunca pretendem ser esquecidos pelo cantor. Seis músicas que se relacionam com os tempos de censura política, ideológica, educacional e cultural no país formam seu repertório: “Domingo no Parque”, “Cálice”, “Back in Bahia”, “Não Chore Mais”, “Expresso 2222” e “Aquele Abraço”, grande parte delas escritas quando estava exilado em Londres.
Família e amigos: bens mais preciosos
E quando o assunto é o amor pela família, Gilberto leva esse sentimento para onde vai. Em um gesto marcado como se fosse uma benção para mais um espetáculo, o artista recebeu um beijo carinhoso da esposa, Flora Gil, antes de aparecer ao público, como foi visto no telão do estádio.
No palco, não largou a possibilidade de estar rodeado dos seus. A banda tem como formação alguns de seus filhos como Bem Gil e José Gil, respectivamente primogênito e caçula do casamento com Flora; e Nara Gil, filha mais velha do cantor e que veio de seu casamento com Belina de Aguiar. Além dos filhos, também participam o neto mais velho, João Gil, filho de Nara, que é backing vocal na turnê; e a nora, Mariá Pinkusfeld, esposa de José Gil. Brincalhão, o artista descontraiu o público em vários momentos com a família, como ao apresentar Nara e Mariá, recordando como a família continua a se multiplicar: “Tem alguém mais nova, né? Acho que é bisneta!”, recordou com sutileza o cantor.
Amigos e colegas de profissão também são sua família. Entre os talentos convidados por Gil para tocar nas apresentações, estão Cosme Vieira no acordeon; Marlon Sette no trombone; Danilo Andrade no teclado; Gustavo Di Dalva e Leonardo Reis na percussão; e demais músicos que, mesmo não mencionados nesta publicação, fazem um trabalho incrível junto aos colegas.
Momentos marcantes
Ao começar “Cálice”, o estádio do Allianz Parque surpreendentemente começou a receber pingos de chuva. Daqui e ali, enquanto Gil interpretava o início da canção em “Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta”, os pingos se multiplicaram; e então, no refrão “Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”, já se viam diversos capuzes de capas de chuva à frente, ao redor e atrás – tanto na pista, quanto na arquibancada.
Quem percebeu, entendeu: foi como se fosse um recado espiritual, algo que transcende o real, uma metáfora para as lágrimas daquela época tão obscura do país. Um texto como esse não seria publicado, e muito menos a pessoa que aqui escreve deveria ousar dizer os horrores das torturas. Aqueles que contrariavam um regime autoritarista não saíam ilesos – lembremos de Vladimir Herzog como o representante de tantos outros jornalistas, calados e punidos apenas por escreverem fatos.
Aos gritos de “Sem Anistia”, o público trouxe um tema atual na política brasileira que contrastou com a interpretação de Gil. Aliás, pode parecer loucura, mas foi só a canção terminar, que a chuva cessou.
Com os olhos já marejados e cansados de quem já viu tanto acontecer, foi no momento de “Drão” que mostrou mais uma vez sua resiliência. A perda de um filho é dolorosa. Três dias antes de se completarem 3 meses da morte de Preta Gil, seu pai canta com um sentimento complexo, que mistura dor e alegria: a saudade.
A canção foi composta em 1981, durante a separação de Gil com a terceira esposa, Sandra Gadelha, mãe de Preta. De forma madura e poética, Gil usou do apelido carinhoso que Maria Bethânia deu à Sandra, Drão, para narrar o fim de um relacionamento marcado por muito afeto e pelo “grão” que se formou dessa união: os filhos amados do casal, que são Preta, Pedro e Maria.
Com a morte acidental de Pedro em 1990, a canção se tornou uma das mais emocionantes para a grande família. E, recentemente, com a morte de Preta após uma dura e longa batalha contra o câncer, o significado da canção ficou ainda mais forte. Da união com Sandra, resta Maria, a discreta filha do cantor, atriz e ativista cigana.
Seu Jorge foi o artista surpresa da noite. Durante a turnê, Gil faz questão de agradar o público com um colega no palco, que chega de forma misteriosa em alguma canção escolhida para dividir a apresentação. Desta vez, os dois cantaram “Refavela”, vibrando os fãs no estádio na zona oeste da capital paulista.
Os últimos minutos do show já soavam como uma mistura de “quero bis”. Ao cantar “Esperando na Janela”, os casais – que estavam em grande número – começaram a dançar o bom e velho forró. Para fechar a noite, Gil mandou um saudoso e forte “Aquele Abraço” para São Paulo.
O veterano, assim, finalizou mais um show com a serenidade de quem sabe que viveu, amou, emocionou. E agora, pausa as apresentações, mas continua com o que sabe fazer de melhor: a música.